“Os Miseráveis”: nossos críticos esconderam a beleza da virtude.
Escrever sobre os chamados “clássicos da literatura mundial” é um desafio duplo: por um lado, há vasta bibliografia e opiniões disponíveis; por outro, parece que tudo já foi dito. Com isso, é inevitável que se questione a necessidade ou a mesmo a pertinência de um novo texto acerca daquela obra.
Seja como for, arrisquei-me a escrever algumas considerações sobre um aspecto específico da obra Os Miseráveis, de Victor Hugo, que não consegui encontrar nas fontes a que tive acesso. Em quase todas as análises que leio a respeito dessa obra, percebo uma certa insistência nos comentários sobre as questões sociais e econômicas, as revoltas, as condições de vida dos trabalhadores e da burguesia, aspectos românticos e costumes da época, controvérsias políticas e por aí vai.
Contudo, encontrei pouquíssimos textos que falassem a respeito daquilo que, a meu ver, é o fio condutor de interpretação (ou pelo menos um dos mais relevantes) para toda a narrativa, qual seja, a promessa feita por um ex-condenado a um sacerdote, comprometendo-se a ser um homem virtuoso. Eis aqui, segundo minha percepção, o evento crucial para o desenrolar de todo este extenso e complexo romance.
Logo no início da narrativa, Jean Valjean, um homem que acaba de sair da prisão após ter sido condenado a 19 anos de trabalhos forçados pelo furto de um pão, procura abrigo num pequeno vilarejo. Percebendo que aquele homem era portador de um passaporte amarelo, reservado aos ex-presidiários, os proprietários dos albergues locais logo o expulsam dali. O único a lhe fornecer abrigo é o Bispo Charles Myriel, conhecido como Monsenhor Bienvenu.
Porém, traindo a generosidade de seu hospedeiro, o abrigado furta os talheres da casa durante a noite e foge. Porém, não vai longe. Pouco depois de sua saída é pego por policiais que o levam novamente à casa do Bispo, a fim de que devolva os itens furtados e seja preso mais uma vez.
Naquele exato momento, a vida de Jean Valjean poderia ter acabado. Já não era mais um jovem e aqueles longos anos de trabalhos forçados seriam retomados, isso após ter usufruído de poucas horas em liberdade. O leitor percebe que uma vida miserável batia, mais uma vez, à porta daquele fugitivo, se não fosse a caridade, a compaixão e a misericórdia do homem religioso a quem furtou e agrediu.
Questionado pelos policiais se reconhecia aquele sujeito e os utensílios que carregava consigo, o bispo responde que sim. Enquanto os soldados já se preparavam para levar o preso à delegacia, o sacerdote repreende o ladrão, dizendo que ele havia esquecido de levar, também, os castiçais de prata, fazendo crer, em frente aos policiais, que os talheres encontrados com o preso, na verdade, haviam sido entregues de presente àquele sujeito.
Com esse ato arriscado e quase incompreensível sob a ótica de muitos, o sacerdote salva aquele ladrão de um novo encarceramento. O bispo então entrega os castiçais a Jean Valjean. Afirma, contudo, que com aquela prata havia “comprado” sua alma, advertindo-o de que, a partir daquele dia, ele deveria se comprometer a tornar-se um homem justo diante de Deus.
A importância desse acontecimento para o restante da obra e da vida de Jean Valjean é muitas vezes menosprezada. Talvez isso ocorra de forma proposital ou pelo fato de Os Miseráveis fornecer aos críticos um material de trabalho quase infindável. Prefiro acreditar na segunda opção.
Por isso, considerando que a narrativa gira em torno da vida de Valjean e daqueles que o cercam, a promessa feita ao bispo emerge como o eixo central de sua transformação, a qual pode ser vista com nitidez, por exemplo, no encontro com o garoto Gervais, que derruba uma moeda no chão. Aquele homem taciturno e que ainda carregava o rancor dos tempos de prisão coloca seus pés sobre a moeda e se dispõe a agredir o jovem para não devolvê-la. Mas após o proprietário do dinheiro fugir, Jean Valjean se recorda do que o bispo havia lhe dito e arrepende-se instantaneamente. Essa passagem transmite, talvez pela primeira vez, o que tento dizer neste texto.
As crises de consciência e os rompantes de virtude que assolam o personagem são frequentes e o seguem até o fim de sua história. Se olharmos para as ações de Jean Valjean, em muitos momentos enxergaremos uma certa bondade, elemento que o torna essa espécie de anti-herói transformado em herói: os cuidados com Fantine até a sua morte; a criação de Cosette como sua filha, protegendo-a de todas as formas; o auxílio a Fauchelevent durante um acidente, salvando a sua vida, assim como a do jovem Marius, dentre outros eventos.
Há quem faça críticas às decisões virtuosas de Valjean e o acusem de covardia, visto que, com sua “moralidade excessiva”, prejudicava outras pessoas, como Cosette. É uma interpretação possível, porém, em minha percepção, isso seria ignorar justamente a motivação primordial de seus atos, que estava alicerçada em algo maior, muito maior, do que o mero prejuízo ou desconforto terreno e circunstancial.
As decisões daquele homem estavam pautadas não na comodidade banal, mas em assumir o dever de ser alguém guiado pelas virtudes, após um dever assumido olho no olho com um homem que havia ensinado a ele o significado de misericórdia e bondade.
Compreender a profundidade das ações de Jean Valjean exige transcender uma visão puramente materialista da realidade. Notamos ao longo de sua vida que não há jogo de palavras, desconforto ou medo de injustiça que o faça mudar de caminho, pois não existe nada que esteja acima de um dever de justiça sentido pela própria alma. Comprometendo-se com aquele bispo, Jean Valjean finalmente entendeu que firmava, em última instância e sem ninguém precisar dizê-lo, um compromisso com Deus.
Por que, então, tantos críticos e comentadores não se atentam para o motivo pelo qual essa transição moral ocorre? Proponho, a quem duvidar do que digo, que faça uma pesquisa sobre a obra nas revistas literárias e artigos científicos. A abordagem quase sempre está ligada aos aspectos sociais, o que não é nenhum pecado e inclusive deve existir. O problema é que o papel da virtude é empurrado descaradamente para debaixo do tapete.
O sofrimento de Fantine ao ser perseguida e precisar se prostituir, ou de Cosette ao realizar duros trabalhos domésticos enquanto criança, tocou-me profundamente, mas ainda aqui eu pude enxergar, em ambas, virtudes como a temperança, a humildade e a caridade. E na medida que Jean Valjean torna-se um homem capaz de amparar ambas as vidas, não é possível, para mim, enxergar nisso apenas criticismo social.
Costumo dizer que a busca incessante pela desconstrução pode ser algo perigoso, pois, se desconstruímos tudo sem construir algo em seu lugar, sobrará o vazio. Por isso, ao notar uma busca desenfreada por interpretações que se dizem modernas e inovadoras, temo que elas resultem numa confusão generalizada sobre as intenções originais da obra ou do autor ou mesmo da razoabilidade interpretativa.
Nesta minha pequena contribuição para a leitura de Os Miseráveis, ressalto a importância de que retornemos aos alicerces da vida humana, a fim de que saibamos identificar as bases que sustentam alguns dos fatos que buscamos interpretar isoladamente.
A obra de Victor Hugo, para além de todo o inegável aspecto histórico, revolucionário, econômico e social, mostra-nos a vida de um homem que busca guiar seus atos pela consciência prudente e justa, mas isso parece ser deixado em segundo plano por aqueles que buscam interpretar os fatos sob uma ótica puramente política.
Se os textos que destacam os problemas sociais contidos na obra são relevantes, também é preciso entender que nem toda vida foi ou será mera construção a serviço de uma ideologia. Nem mesmo a de Jean Valjean, que morreu com lágrimas nos olhos, iluminado por aqueles mesmos castiçais de prata entregues a ele pelo bispo.
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