Menos cultura e mais barulho: Machado e nossos medalhões.

Basta abrir qualquer rede social para que, em questão de segundos, o usuário se depare com postagens sobre como ser mais produtivo e alcançar o sucesso – sem que, claro, este seja claramente definido – ou sobre a tremenda injustiça cometida contra fulano na noite passada (sim, já houve tempo suficiente para apurar os fatos).

O importante, como sabemos, não é estar verdadeiramente a par daquilo que nos cerca, mas apenas projetar a imagem de que estamos atualizados em relação a tudo. Machado de Assis já percebia essa dinâmica no século XIX. Em seu conto “A teoria do medalhão”, publicado originalmente em 1881, Machado descreve uma profissão fictícia, com requisitos próprios, simbolizando uma crítica aguda à superficialidade. A ironia utilizada por nosso Bruxo do Cosme Velho ressoa surpreendentemente na contemporaneidade, tempos em que a presença virtual requer de muitos a construção de verdadeiros personagens, que simulam engajamento, empatia, erudição e autenticidade.

O conto tem início num diálogo entre pai e filho, no aniversário de vinte e um anos do rapaz, enquanto este ouve atentamente as sugestões de seu velho para se dar bem neste cargo valioso: o de “Medalhão”. Ao explicar as qualidades necessárias para o bom exercício deste intrigante ofício, o pai descreve detalhadamente as atitudes que se esperam de um bom profissional da área. Mais de um século depois, a profissão parece ter crescido significativamente. Vamos aos seus principais requisitos.

O primeiro atributo do Medalhão é, paradoxalmente, a ausência de ideias. Ao ingressar na carreira, é fundamental ter extremo cuidado com os pensamentos que se permite nutrir, sendo ideal não tê-los de forma alguma. O pai, observando o filho, elogia sua “perfeita inópia mental”, que se revela na habilidade de dissertar longamente sobre amenidades:

– Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente  ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência de idéias, ainda assim pode não passar de uma traição da memória. Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expender francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma eloqüente, eis aí uma esperança, No entanto, podendo acontecer que, com a idade, venhas a ser afligido de algumas idéias próprias, urge aparelhar fortemente o espírito. As idéias são de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que as sofreemos, elas irrompem e precipitam-se. Daí a certeza com que o vulgo, cujo faro é extremamente delicado, distingue o medalhão completo do medalhão incompleto.

Portanto, não basta que o medalhão se abstenha de nutrir ideias próprias a respeito dos assuntos, mas também é essencial que fale sobre as amenidades do cotidiano, sobre os temas que pouco ou nada impactam a vida dos demais. Da leitura deste trecho, o leitor pode imaginar o que a ironia de Machado atinge, atualmente,  um número imenso de pessoas que acumulam riqueza fazendo posts diários sobre aspectos menores da realidade. Nossos consagrados “blogueiros”.

Adiante, um novo conselho para evitar o surgimento de ideias próprias: nunca andar desacompanhado, pois “a solidão é oficina de ideias, e o espírito deixado a si mesmo, embora no meio da multidão, pode adquirir uma tal ou qual atividade”. Esse certamente é mais um dos conselhos seguidos à risca por boa parte dos medalhões da atualidade. Mesmo que estejam trancafiados em seus apartamentos (ou na casa de seus pais), nunca estão verdadeiramente sós, posto que os dedos deslizam pelas telas para ler as opiniões alheias e tocam o teclado para mais um ou outro comentário apressado sobre qualquer coisa que apareça e lhe caiba julgar.

Prosseguindo no texto, já era dado o momento de o pai fornecer ao filho conselhos sobre o que fazer diante da vida concreta, nas rodas de amigos, nos passeios e tudo mais. A primeira dica é entrar nas livrarias, mas nunca de uma forma silenciosa, sendo imprescindível a publicidade do ato:

Não faz mal; tens o valente recurso de mesclar-te aos pasmatórios, em que toda a poeira da solidão se dissipa. As livrarias, ou por causa da atmosfera do lugar, ou por qualquer outra, razão que me escapa, não são propícias ao nosso fim; e, não obstante, há grande conveniência em entrar por elas, de quando em quando, não digo às ocultas, mas às escâncaras. Podes resolver a dificuldade de um modo simples: vai ali falar do boato do dia, da anedota da semana, de um contrabando, de uma calúnia, de um cometa, de qualquer coisa, quando não prefiras interrogar diretamente os leitores habituais das belas crônicas de Mazade; 75 por cento desses estimáveis cavalheiros repetir-te-ão as mesmas opiniões, e uma tal monotonia é grandemente saudável. Com este regime, durante oito, dez, dezoito meses – suponhamos dois anos, – reduzes o intelecto, por mais pródigo que seja, à sobriedade, à disciplina, ao equilíbrio comum.

Como bem se nota, neste caso, uma ação isolada não bastará. É preciso um conjunto de práticas. Além de ingressar nas livrarias a fim de ser visto pelos demais, demonstrando a sua grandeza intelectual com base nos ambientes que frequenta, deve o medalhão enfiar-se nos assuntos em voga, nos temas que estão na boca de todos, partilhando da opinião comum, é claro, sempre de forma superficial.

Mais uma vez, o texto parece ter sido escrito hoje. Ah, tempo em que não se pode deixar de falar sobre nada! Tempo em que é preciso dar um parecer sobre tudo! Um tempo em que não é permitido se omitir. Há muito mais honra na partilha do sentimento geral, ainda que por inércia, do que na omissão. Falem, falem, pelo amor de Deus!

Entretanto, não fale de qualquer forma, não. O bom medalhão, ainda que sem conteúdo próprio ou relevante (o que é proibido), deverá trazer consigo um número razoável de frases e expressões prontas, assim como jargões Prêt-à-porter. Viram!? Aí está! Bom, o pai atencioso explica melhor em seu conselho:

Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocardos jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento. Caveant consules é um excelente fecho de artigo político; o mesmo direi do Si vis pacem para bellum. Alguns costumam renovar o sabor de uma citação intercalando-a numa frase nova, original e bela, mas não te aconselho esse artifício: seria desnaturar-lhe as graças vetustas. Melhor do que tudo isso, porém, que afinal não passa de mero adorno, são as frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos, incrustadas na memória individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de não obrigar os outros a um esforço inútil. Não as relaciono agora, mas fá-lo-ei por escrito. De resto, o mesmo ofício te irá ensinando os elementos dessa arte difícil de pensar o pensado.

Portanto, bem alinhada a forma e o conteúdo dos discursos, entramos em um conselho crucial para que todo este aparato funcione: a publicidade. Quanto a isto, o conselho não poderia ser mais direto:

– Não te falei ainda dos benefícios da publicidade. A publicidade é uma dona loureira e senhoril, que tu deves requestar à força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, coisas miúdas, que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição

 Logo, para tornar-se público, tudo vale e toda a série de gracejos é bem-vinda. Aqui, é quase desnecessário dizer que aquele sujeito do tipo intransigente em relação à sua moral, à sua ética, ao seu profissionalismo, etc., não tem vez alguma. Ficará para trás na escalada rumo ao sucesso enquanto medalhão.

Na sequência do texto, inclusive, o pai afetuoso dá conselhos práticos sobre como alavancar a publicidade, que podem ser utilizados de forma magnífica com as atuais ferramentas disponíveis. O filho é aconselhado a trazer à luz todos os seus sucessos, ainda que de pouca importância. Deve necessariamente estar metido nos agradecimentos, nos discursos, nos jantares, nas manchetes, etc. Com isso está quase completo um medalhão.

Por fim, pulando alguns conselhos para que o leitor se instigue a buscá-los no próprio conto, surge uma dica central sobre um tema igualmente basilar: a política. E como se portar diante da política? Eis tudo:

E parece-lhe que todo esse ofício é apenas um sobressalente para os deficits da vida?

– Decerto; não fica excluída nenhuma outra atividade.

– Nem política?

– Nem política. Toda a questão é não infringir as regras e obrigações capitais. Podes pertencer a qualquer partido, liberal ou conservador, republicano ou ultramontano, com a cláusula única de não ligar nenhuma idéia especial a esses vocábulos, e reconhecer-lhe somente a utilidade do scibboleth bíblico.

Dessa forma, independentemente de qual partido ou movimento político você escolha participar, bastará um pouco de cuidado para que se mantenha como um medalhão. É necessário apenas que não aprofunde seus argumentos sobre política. Grite! Levante a bandeira! Revolte-se! Brigue! Bata! Mas, por favor, não traga ideias.

Feitas as considerações necessárias sobre o medalhão, notamos a contemporaneidade do conto de Machado. Para qualquer pessoa que transite pelos escritórios, pelo mundo acadêmico e por tantos outros ambientes, hoje estendidos pelo alcance virtual das redes sociais, o conto nos causa alguns risos, pois escancara o discurso egocêntrico, pedante e superficial mantido por tantas pessoas nos ambientes ditos intelectuais.

Seria bom que todos lessem esse que considero um dos melhores contos de Machado de Assis, a fim de que sua ironia possa incentivar uma busca não apenas por humildade, mas por autenticidade. Não se prender ao desejo incessante de parecer o que não se é talvez seja o primeiro passo para que, um dia, o ofício de medalhão possa se ver em risco.

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