Sísifo e o estudo do jurista.

Seja qual for a função exercida, aquele que trabalha com o Direito, talvez mais do que em qualquer outro ramo de atuação profissional, possui a obrigação de estar sempre atualizado. E quando digo que existe uma “obrigação”, não falo sequer de um respeitável e admirável dever moral da profissão, mas de uma imposição da realidade para a sobrevivência, mas que nos pune com uma quantidade grande de tempo e energia deixados nos textos já mortos.

Para ilustrar o que pretendo desenvolver neste texto, relembro um episódio pessoal recente. Estava na casa de uma familiar e ela, advogada, me disse que havia separado alguns livros, caso eu quisesse levar. Considerando que boa parte da minha vida adulta eu passei em sebos e livrarias, é claro que não deixaria passar aquela oportunidade de levar alguns exemplares comigo.

Quando passei a analisar as pilhas de livros, notei que todos eram jurídicos, em sua maioria publicados entre 2010 e 2020, o que em qualquer área do conhecimento tende a ser considerado um período razoavelmente recente. Na filosofia, área na qual atualmente desenvolvo minha pesquisa de mestrado, costumamos ler obras de séculos e séculos atrás – e que ainda guardam muito valor. Mas naquela pilha de obras jurídicas, não encontrei sequer uma que eu pudesse de fato utilizar na rotina da advocacia. A grande maioria dos livros tratava de temas relativos ao Código de Processo Civil antigo e outros abordavam temas igualmente já bastante modificados pela legislação.

Passei o resto da viagem pensando: “e as pessoas que decoraram todos aqueles manuais?”. Embora possam ter usado aquele conhecimento momentaneamente, em suas tarefas profissionais, hoje ele provavelmente já não vale quase nada, a não ser para uma eventual comparação legislativa. Com muito custo, precisamos admitir que todas as doutrinas, os artigos científicos, os debates, os entendimentos judiciais etc., costumam morrer junto com a norma sobre a qual discutem. É um caso raro no processo de aquisição de conhecimento pelo ser humano.

Ainda que todos os ensinamentos obtidos não se percam, via de regra, tornam-se praticamente inúteis, pois o Direito costuma regular situações práticas. De nada adianta, por exemplo, saber de cor a contagem de prazos nos processos X, Y e Z, se todos foram alterados. Essa lista mental deve ser jogada no lixo, para que outra lista ocupe seu lugar.

Como falei, isso é muito raro. Nos outros campos que particularmente gosto de estudar (filosofia, história, teologia etc.), a aquisição de conhecimento caminha em uma progressão, acumulando-se aquilo que já foi aprendido com aquilo que se aprende a cada dia, permitindo a construção de um todo coeso e cada vez mais profundo.

Essa constatação me levou a uma inquietação mais profunda: como conviver com a consciência de que uma parte significativa de nosso esforço intelectual está, de antemão, condenada a se tornar obsoleta? Como alimentar a vocação por um saber que envelhece tão depressa quanto o Diário Oficial publica as reformas normativas?

A advocacia e as demais profissões jurídicas se assemelham, nesse ponto, ao mito de Sísifo: empurra-se, dia após dia, o rochedo de interpretações, entendimentos e normas, apenas para vê-lo rolar morro abaixo na próxima virada jurisprudencial ou legislativa. Somos chamados a sermos estudiosos incansáveis de um objeto que se move, se esvai, se transforma e, não raro, contradiz a si mesmo. E o mais curioso, ou trágico, é que, mesmo cientes dessa lógica, seguimos estudando; lemos, sublinhamos, anotamos margens de livros e redigimos artigos. Há, nisso, algo de admirável, sim, mas também um pequeno gosto de frustração. A cada nova súmula que modifica um entendimento anterior, sentimos, ainda que por pouco tempo, o luto por um conhecimento revogado.

No entanto, compreendo que há um traço nobre nesse esforço, pois ele é profundamente responsável. Ao lidar com a vida concreta das pessoas, suas disputas, suas dores, seus contratos, seus medos, o Direito nos pede não apenas conhecimento técnico, mas uma atuação prática constante. O jurista, diferentemente do filósofo, não pode repousar em certas teorias por tempo indeterminado. Acabamos por aceitar o desafio e reciclar e renovar conhecimentos em prol da melhor prestação técnica possível.

Talvez, por isso mesmo, seja importante que o jurista busque em outros campos uma certa substância que auxilie a nutrir seu intelecto e sua cosmovisão de forma mais perene. Isso pode ser feito por meio da filosofia, da literatura, ou de outros saberes, mas que forneçam ao operador do Direito uma espécie de porto seguro epistemológico, com maior densidade e meditação; que funcionem como uma reserva de sentido mais profundo e menos passageiro. É claro que não se trata de desprezar o conhecimento jurídico, mas de situá-lo em seu espaço de atuação e sobretudo em seus próprios limites; ele não é um fim em si mesmo, mas uma técnica que serve à justiça, e a justiça, por sua vez, é uma ideia que vive além das normas.

Quem confunde uma com outra, corre o risco de perder-se nos labirintos do formalismo. Porém, se compreendemos essa dinâmica, possivelmente podemos conviver melhor com a transitoriedade do saber jurídico, sabendo que ele serve, sim, para uma pretensão de ordenação social, mas também para a concretização de valores que o transcendem.

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